Reflexão teológico-doutrinal a partir da obra de J. R. R. Tolkien
Resumo
A partir da célebre citação de Gandalf, personagem criado por J. R.
R. Tolkien em O Senhor dos Anéis, este artigo propõe uma leitura teológica que
integra a antropologia cristã e o magistério da Igreja Católica, especialmente
quanto à inviolabilidade da vida humana, a ilegitimidade da pena de morte e a
gravidade moral do aborto. A reflexão busca mostrar como Tolkien, profundamente
influenciado por sua fé católica, expressa na literatura uma verdade teológica:
o homem não é senhor da vida nem da morte. À luz da Sagrada Escritura, do
Catecismo da Igreja Católica e do Código de Direito Canônico, demonstra-se que
tanto a pena de morte quanto o aborto são expressões de uma justiça humana que,
ao pretender corrigir o mal, acaba por negar o dom divino da vida.
Palavras-chave: Tolkien; Doutrina Católica; Vida; Pena de Morte; Aborto;
Misericórdia; Justiça.
1. Introdução
Em O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel, Gandalf dirige a
Frodo uma das frases mais marcantes de toda a obra de J. R. R. Tolkien:
“Muitos que vivem merecem a morte. E alguns que morrem merecem viver. Você pode dar-lhes a vida? Então não seja tão ávido para julgar e condenar alguém à morte. Pois mesmo os muitos sábios não conseguem ver os dois lados.” (TOLKIEN, 2001).
Essa citação carrega uma densidade ética e espiritual que ultrapassa
o campo da ficção. Tolkien, católico praticante e profundamente influenciado
pelo pensamento cristão, expressa aqui uma teologia da humildade diante do
mistério da vida e da morte. A reflexão propõe uma leitura desta passagem à luz
da doutrina católica, integrando Sagrada Escritura, Catecismo da Igreja
Católica e Código de Direito Canônico, com enfoque nas temáticas da pena de
morte e do aborto.
2.
A vida como dom e mistério
A antropologia cristã parte de um princípio fundamental: a vida
humana é sagrada e inviolável, pois tem em Deus sua origem e seu fim (CIC, n.
2258). A vida não é propriedade do homem, mas dom confiado à sua
responsabilidade. Nenhum poder humano pode legitimamente decidir sobre o fim da
vida inocente. A advertência de Gandalf ecoa esta verdade teológica: o homem,
mesmo sábio, não detém a perspectiva total da justiça divina.
3.
“Você pode dar-lhes a vida?” — A limitação do juízo humano
A pergunta de Gandalf possui um caráter teológico profundo: “Você
pode dar-lhes a vida?” (Dt 32,39). Somente Deus é Senhor da vida e da morte.
Este reconhecimento conduz à humildade diante do mistério da providência
divina. O julgamento humano não pode pretender a retidão do juízo divino,
conforme o Evangelho: “Não julgueis, e não sereis julgados” (Lc 6,37).
4.
A pena de morte: o juízo sem misericórdia
Historicamente, a Igreja admitiu a pena de morte como último recurso
de legítima defesa (CIC, ed. anterior, n. 2267). Contudo, o desenvolvimento da
doutrina levou à reafirmação de que tal prática é inadmissível. O Catecismo
atualizado declara: “A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é
inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa”
(CIC, n. 2267). O Código de Direito Canônico, cân. 1311 §2, expressa o mesmo
princípio: as penas têm sempre em vista o bem espiritual do fiel e a reparação
do escândalo.
5.
O aborto: o juízo humano contra a vida inocente
Se a pena de morte representa o abuso do poder sobre a vida do
culpado, o aborto manifesta o mesmo abuso sobre a vida do inocente. O Catecismo
ensina: “A vida humana deve ser respeitada e protegida de modo absoluto desde a
concepção” (CIC, n. 2270). O Código de Direito Canônico, cân. 1398, reforça:
“Quem procura o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae
sententiae.” Tal sanção não é mera punição, mas reconhecimento da gravidade
espiritual de atentar contra o dom da vida.
6.
Misericórdia e justiça: os dois lados que só Deus vê
A frase de Tolkien evoca o equilíbrio entre misericórdia e justiça.
A justiça divina é perfeita porque é também misericordiosa: “A misericórdia
triunfa sobre o juízo” (Tg 2,13). A sabedoria de Gandalf reflete o coração do
Evangelho: a justiça que não é temperada pela misericórdia se torna injusta.
7.
Conclusão: A santidade da vida e o primado da esperança
À luz da doutrina católica, a frase de Tolkien assume força
profética. Ela denuncia a pretensão humana de decidir o destino da vida e
convida à conversão do olhar. Como ensina João Paulo II em Evangelium Vitae (n.
3), toda ameaça à vida humana exige solicitude e defesa. Tanto a pena de morte
quanto o aborto revelam uma sociedade que perdeu a confiança na graça. Quem não
pode dar a vida, não deve tirá-la — e quem conheceu o dom da Vida em Cristo,
deve defendê-la até o fim.
Referências
Bibliográficas
·
TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos
Anéis: A Sociedade do Anel. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
·
BÍBLIA SAGRADA. Edições CNBB,
2018.
·
IGREJA CATÓLICA. Catecismo da
Igreja Católica. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1997; edição atualizada
2018.
·
IGREJA CATÓLICA. Código de Direito
Canônico. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1983.
·
JOÃO PAULO II. Evangelium
Vitae. Vaticano, 1995.
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