terça-feira, 11 de novembro de 2025

A Misericórdia e a Justiça Divina diante da Vida Humana à Luz da Doutrina Católica

 Reflexão teológico-doutrinal a partir da obra de J. R. R. Tolkien

Resumo

A partir da célebre citação de Gandalf, personagem criado por J. R. R. Tolkien em O Senhor dos Anéis, este artigo propõe uma leitura teológica que integra a antropologia cristã e o magistério da Igreja Católica, especialmente quanto à inviolabilidade da vida humana, a ilegitimidade da pena de morte e a gravidade moral do aborto. A reflexão busca mostrar como Tolkien, profundamente influenciado por sua fé católica, expressa na literatura uma verdade teológica: o homem não é senhor da vida nem da morte. À luz da Sagrada Escritura, do Catecismo da Igreja Católica e do Código de Direito Canônico, demonstra-se que tanto a pena de morte quanto o aborto são expressões de uma justiça humana que, ao pretender corrigir o mal, acaba por negar o dom divino da vida.

Palavras-chave: Tolkien; Doutrina Católica; Vida; Pena de Morte; Aborto; Misericórdia; Justiça.

1. Introdução

Em O Senhor dos AnéisA Sociedade do Anel, Gandalf dirige a Frodo uma das frases mais marcantes de toda a obra de J. R. R. Tolkien:

“Muitos que vivem merecem a morte. E alguns que morrem merecem viver. Você pode dar-lhes a vida? Então não seja tão ávido para julgar e condenar alguém à morte. Pois mesmo os muitos sábios não conseguem ver os dois lados.” (TOLKIEN, 2001).

Essa citação carrega uma densidade ética e espiritual que ultrapassa o campo da ficção. Tolkien, católico praticante e profundamente influenciado pelo pensamento cristão, expressa aqui uma teologia da humildade diante do mistério da vida e da morte. A reflexão propõe uma leitura desta passagem à luz da doutrina católica, integrando Sagrada Escritura, Catecismo da Igreja Católica e Código de Direito Canônico, com enfoque nas temáticas da pena de morte e do aborto.

2. A vida como dom e mistério

A antropologia cristã parte de um princípio fundamental: a vida humana é sagrada e inviolável, pois tem em Deus sua origem e seu fim (CIC, n. 2258). A vida não é propriedade do homem, mas dom confiado à sua responsabilidade. Nenhum poder humano pode legitimamente decidir sobre o fim da vida inocente. A advertência de Gandalf ecoa esta verdade teológica: o homem, mesmo sábio, não detém a perspectiva total da justiça divina.

3. “Você pode dar-lhes a vida?” — A limitação do juízo humano

A pergunta de Gandalf possui um caráter teológico profundo: “Você pode dar-lhes a vida?” (Dt 32,39). Somente Deus é Senhor da vida e da morte. Este reconhecimento conduz à humildade diante do mistério da providência divina. O julgamento humano não pode pretender a retidão do juízo divino, conforme o Evangelho: “Não julgueis, e não sereis julgados” (Lc 6,37).

4. A pena de morte: o juízo sem misericórdia

Historicamente, a Igreja admitiu a pena de morte como último recurso de legítima defesa (CIC, ed. anterior, n. 2267). Contudo, o desenvolvimento da doutrina levou à reafirmação de que tal prática é inadmissível. O Catecismo atualizado declara: “A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa” (CIC, n. 2267). O Código de Direito Canônico, cân. 1311 §2, expressa o mesmo princípio: as penas têm sempre em vista o bem espiritual do fiel e a reparação do escândalo.

5. O aborto: o juízo humano contra a vida inocente

Se a pena de morte representa o abuso do poder sobre a vida do culpado, o aborto manifesta o mesmo abuso sobre a vida do inocente. O Catecismo ensina: “A vida humana deve ser respeitada e protegida de modo absoluto desde a concepção” (CIC, n. 2270). O Código de Direito Canônico, cân. 1398, reforça: “Quem procura o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae.” Tal sanção não é mera punição, mas reconhecimento da gravidade espiritual de atentar contra o dom da vida.

6. Misericórdia e justiça: os dois lados que só Deus vê

A frase de Tolkien evoca o equilíbrio entre misericórdia e justiça. A justiça divina é perfeita porque é também misericordiosa: “A misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tg 2,13). A sabedoria de Gandalf reflete o coração do Evangelho: a justiça que não é temperada pela misericórdia se torna injusta.

7. Conclusão: A santidade da vida e o primado da esperança

À luz da doutrina católica, a frase de Tolkien assume força profética. Ela denuncia a pretensão humana de decidir o destino da vida e convida à conversão do olhar. Como ensina João Paulo II em Evangelium Vitae (n. 3), toda ameaça à vida humana exige solicitude e defesa. Tanto a pena de morte quanto o aborto revelam uma sociedade que perdeu a confiança na graça. Quem não pode dar a vida, não deve tirá-la — e quem conheceu o dom da Vida em Cristo, deve defendê-la até o fim.

Referências Bibliográficas

·         TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

·         BÍBLIA SAGRADA. Edições CNBB, 2018.

·         IGREJA CATÓLICA. Catecismo da Igreja Católica. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1997; edição atualizada 2018.

·         IGREJA CATÓLICA. Código de Direito Canônico. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1983.

·         JOÃO PAULO II. Evangelium Vitae. Vaticano, 1995.

FRANCISCO. Carta ao Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a nova redação do n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica. Vaticano, 2018.

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