terça-feira, 11 de novembro de 2025

Justiça não é Cura

 

Reflexão teológico-literária inspirada em J.R.R. Tolkien e na Doutrina Católica

 

"Nem deveis esquecer que [...] Justiça não é Cura. A Cura vem apenas por meio de sofrimento e paciência e não faz exigência nenhuma, nem mesmo Justiça. A Justiça opera apenas dentro das fronteiras das coisas como elas são [...] e, portanto, embora a Justiça seja boa em si mesma e não deseje nenhum mal a mais, pode acabar não mais do que perpetuando o mal que existiu e não o impede de produzir seu fruto de tristeza."


(O Anel de Morgoth, parte três: Leis e Costumes entre os Eldar)


A observação de Tolkien é profundamente perspicaz e encontra notável analogia na Teologia Católica, no Catecismo da Igreja e na Sagrada Escritura.

O Legendarium de Tolkien é todo permeado por temas cristãos, e a frase “Justiça não é Cura” toca o cerne da distinção entre a Lei e a Graça, entre a justiça legal e a Misericórdia Divina.


Justiça e Cura na Doutrina Católica

O conceito tolkieniano reflete a ideia de que a Justiça — entendida como retribuição, “dar a cada um o que lhe é devido” — é insuficiente para restaurar a integridade quebrada pelo mal ou pelo pecado.

A Cura (Redenção e Salvação), por outro lado, é um dom que vai além da mera justiça, atuando por meio da Misericórdia e do Sofrimento Redentor.

 1. A Justiça como Fronteira (O Limite da Lei)

Assim como Tolkien diz que a Justiça opera “apenas dentro das fronteiras das coisas como elas são”, a Lei — seja o Direito Canônico, seja a Lei Mosaica — estabelece os limites do que é lícito e devido, mas não tem poder para remover a raiz do mal.

·         Catecismo da Igreja Católica (CIC):

A Justiça é a virtude moral que consiste na vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido (CIC 1807).

A Lei, porém, ainda que sagrada, não salva por si mesma: mostra o pecado, mas não concede a graça para superá-lo.

Assim, a Lei é pedagoga (cf. Gl 3,24), mas a salvação vem da fé e da graça de Cristo.

·         Código de Direito Canônico (CDC):

O CDC estabelece normas e penas (Cân. 1311ss) “para o bem da Igreja e a salvação das almas” (Cân. 1752).

As penas visam reparar o escândalo, restabelecer a justiça e corrigir o culpado, mas a cura espiritual (salus animarum) é sempre o objetivo supremo — ultrapassando a simples aplicação da sanção.

·         Passagens Bíblicas:

“Pela Lei vem, de fato, o conhecimento do pecado.” (Romanos 3,20)

A Justiça da Lei revela o mal, mas não oferece o remédio; mostra a ferida, mas não concede a cura.

 

2. A Cura pelo Sofrimento e Paciência (Misericórdia e Redenção)

Tolkien afirma que a Cura vem “apenas por meio de sofrimento e paciência” e “não faz exigência nenhuma, nem mesmo Justiça”.

Essa percepção ressoa profundamente na Teologia da Redenção, onde a Misericórdia de Deus supera a Sua Justiça.

·         Teologia Católica (Ato Redentor):

A cura definitiva da humanidade não se deu pela aplicação de uma justiça punitiva, mas pelo ato gratuito de amor de Cristo, que assumiu o sofrimento na Cruz.

Esse sofrimento, vivido com paciência e obediência, é a fonte da nossa cura (Redenção).

Em Cristo, a Justiça divina manifesta-se como Misericórdia (cf. Dives in Misericordia, São João Paulo II).

·         Catecismo da Igreja Católica (CIC):

A Justificação é “a obra mais excelente da misericórdia de Deus” (CIC 2020).

“A justificação continua a iniciativa da misericórdia de Deus, que oferece o perdão, reconcilia o homem com Deus, liberta-o da escravidão do pecado e cura-o.” (CIC 1990)

O sofrimento unido à Paixão de Cristo tem valor salvífico (CIC 1505):

é por meio da paciência e do amor que o sofrimento se transforma em instrumento de cura e redenção.

·         Passagens Bíblicas:

“Porque Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crer não se perca, mas tenha a vida eterna.” (João 3,16)

“O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo o pecado.” (1 João 1,7)

 

3. A Justiça que Perpetua o Mal (Justiça Humana Incompleta)

A observação de Tolkien — de que a Justiça “pode acabar não mais do que perpetuando o mal que existiu e não o impede de produzir seu fruto de tristeza” — denuncia a insuficiência da justiça retributiva.

A justiça humana, ao tentar reparar o mal apenas pela punição, muitas vezes mantém viva a lógica da retaliação, perpetuando o mesmo princípio de desordem que buscava corrigir.

 A justiça, quando desligada da caridade, tende a espelhar o mal que combate, reproduzindo-o em nova forma. 

“A ira do homem não produz a justiça de Deus.” (Tiago 1,20)

A vingança, ainda que mascarada de justiça, apenas alimenta o ciclo da dor e da culpa — um ciclo que somente o perdão é capaz de romper.

 

        A Justiça sem Misericórdia: limite e tragédia

Na ordem humana, o direito é necessário, mas limitado. Pode punir o infrator, mas não transforma o coração.

Pode restabelecer a ordem externa, mas não reconstituir a comunhão interior ferida pelo pecado. 

O Código de Direito Canônico reconhece isso ao afirmar que toda lei e pena têm como fim último a salvação das almas (Cân. 1752).

Quando a norma se torna um fim em si, esquecendo o bem da pessoa, ela se desvia de sua essência e torna-se farisaica:

“Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã e negligenciais os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade.” (Mateus 23,23)

 

        A Misericórdia como plenitude da Justiça

A verdadeira Justiça divina não é simples retribuição, mas restauração amorosa da ordem ferida.

Deus não destrói o pecador para eliminar o pecado — Ele o transforma pela graça.

 

“A misericórdia não suprime a justiça, mas é a plenitude dela.”

(Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q.30, a.4)

 

A justiça humana busca equilibrar contas;

a justiça divina busca regenerar comunhão.

No Calvário, Cristo não exigiu compensação, mas ofereceu perdão:

 

“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” (Lucas 23,34)Ali, a Justiça e a Misericórdia se beijaram (Salmo 84,11), e o mal foi desarmado pela entrega.

 

        A Cura que impede o mal de frutificar

A Cura, portanto, é a única força capaz de impedir que o mal continue a gerar tristeza.

A justiça, por si só, é reativa; a cura é criativa.

A justiça recompõe o passado; a cura inaugura o futuro.

 

Aquele que cura não exige compensação, mas oferece compaixão.

Assim é Cristo, que toma sobre Si a culpa alheia para que o mal não mais frutifique.

 

“A misericórdia triunfa sobre o juízo.” (Tiago 2,13)

 

Conclusão

A distinção entre Justiça e Cura que Tolkien traça é uma verdadeira chave para compreender o coração do Evangelho.

A Lei é necessária, mas apenas a Graça cura.

A Justiça ordena o mundo como ele é;

a Misericórdia o recria como ele deveria ser.

 

A Cura é o nome teológico do amor que vai além do direito.

E é nesse ponto que a sabedoria de Tolkien toca a mais profunda verdade cristã:

 

A redenção não é um ato de justiça satisfeita, mas de amor crucificado.

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