Reflexão teológico-literária
inspirada em J.R.R. Tolkien e na Doutrina Católica
"Nem deveis
esquecer que [...] Justiça não é Cura. A Cura vem apenas por meio de sofrimento
e paciência e não faz exigência nenhuma, nem mesmo Justiça. A Justiça opera
apenas dentro das fronteiras das coisas como elas são [...] e, portanto, embora
a Justiça seja boa em si mesma e não deseje nenhum mal a mais, pode acabar não
mais do que perpetuando o mal que existiu e não o impede de produzir seu fruto
de tristeza."
(O Anel de Morgoth, parte três: Leis e Costumes entre os Eldar)
A observação de Tolkien é profundamente perspicaz e
encontra notável analogia na Teologia Católica, no Catecismo da Igreja e na Sagrada
Escritura.
O Legendarium de Tolkien é todo permeado por
temas cristãos, e a frase “Justiça não é Cura” toca o cerne da distinção entre
a Lei e a Graça, entre a justiça legal e a Misericórdia Divina.
⚖ Justiça e Cura na Doutrina Católica
O conceito tolkieniano reflete a ideia de que a Justiça
— entendida como retribuição, “dar a cada um o que lhe é devido” — é
insuficiente para restaurar a integridade quebrada pelo mal ou pelo pecado.
A Cura (Redenção e Salvação), por outro lado, é um
dom que vai além da mera justiça, atuando por meio da Misericórdia e do Sofrimento
Redentor.
Assim como Tolkien diz que a Justiça opera “apenas
dentro das fronteiras das coisas como elas são”, a Lei — seja o Direito
Canônico, seja a Lei Mosaica — estabelece os limites do que é lícito e devido,
mas não tem poder para remover a raiz do mal.
·
Catecismo da Igreja
Católica (CIC):
A Justiça é a virtude moral
que consiste na vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhes
é devido (CIC 1807).
A Lei, porém, ainda que
sagrada, não salva por si mesma: mostra o pecado, mas não concede a graça para
superá-lo.
Assim, a Lei é pedagoga
(cf. Gl 3,24), mas a salvação vem da fé e da graça de Cristo.
·
Código de Direito Canônico
(CDC):
O CDC estabelece normas e
penas (Cân. 1311ss) “para o bem da Igreja e a salvação das almas” (Cân. 1752).
As penas visam reparar o
escândalo, restabelecer a justiça e corrigir o culpado, mas a cura espiritual (salus
animarum) é sempre o objetivo supremo — ultrapassando a simples aplicação
da sanção.
·
Passagens Bíblicas:
“Pela Lei vem, de fato, o
conhecimento do pecado.” (Romanos 3,20)
A Justiça da Lei revela o
mal, mas não oferece o remédio; mostra a ferida, mas não concede a cura.
2. A Cura
pelo Sofrimento e Paciência (Misericórdia e Redenção)
Tolkien afirma que a Cura vem “apenas por meio de
sofrimento e paciência” e “não faz exigência nenhuma, nem mesmo Justiça”.
Essa percepção ressoa profundamente na Teologia da
Redenção, onde a Misericórdia de Deus supera a Sua Justiça.
·
Teologia Católica (Ato
Redentor):
A cura definitiva da
humanidade não se deu pela aplicação de uma justiça punitiva, mas pelo ato
gratuito de amor de Cristo, que assumiu o sofrimento na Cruz.
Esse sofrimento, vivido com
paciência e obediência, é a fonte da nossa cura (Redenção).
Em Cristo, a Justiça divina
manifesta-se como Misericórdia (cf. Dives in Misericordia, São João
Paulo II).
·
Catecismo da Igreja
Católica (CIC):
A Justificação é “a obra
mais excelente da misericórdia de Deus” (CIC 2020).
“A justificação continua a
iniciativa da misericórdia de Deus, que oferece o perdão, reconcilia o homem
com Deus, liberta-o da escravidão do pecado e cura-o.” (CIC 1990)
O sofrimento unido à Paixão
de Cristo tem valor salvífico (CIC 1505):
é por meio da paciência e
do amor que o sofrimento se transforma em instrumento de cura e redenção.
·
Passagens Bíblicas:
“Porque Deus amou tanto o
mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crer não se
perca, mas tenha a vida eterna.” (João 3,16)
“O sangue de Jesus, seu
Filho, nos purifica de todo o pecado.” (1 João 1,7)
3. A Justiça
que Perpetua o Mal (Justiça Humana Incompleta)
A observação de Tolkien — de que a Justiça “pode
acabar não mais do que perpetuando o mal que existiu e não o impede de produzir
seu fruto de tristeza” — denuncia a insuficiência da justiça retributiva.
A justiça humana, ao tentar reparar o mal apenas
pela punição, muitas vezes mantém viva a lógica da retaliação, perpetuando o
mesmo princípio de desordem que buscava corrigir.
“A ira
do homem não produz a justiça de Deus.” (Tiago 1,20)
A
vingança, ainda que mascarada de justiça, apenas alimenta o ciclo da dor e da
culpa — um ciclo que somente o perdão é capaz de romper.
•
A Justiça sem Misericórdia: limite e tragédia
Na ordem humana, o direito
é necessário, mas limitado. Pode punir o infrator, mas não transforma o
coração.
Pode restabelecer a ordem
externa, mas não reconstituir a comunhão interior ferida pelo pecado.
O Código de Direito Canônico reconhece isso ao afirmar que toda lei e pena têm
como fim último a salvação das almas
(Cân. 1752).
Quando a norma se torna um
fim em si, esquecendo o bem da pessoa, ela se desvia de sua essência e torna-se
farisaica:
“Ai de
vós, escribas e fariseus hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã e
negligenciais os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e
a fidelidade.” (Mateus 23,23)
•
A Misericórdia como
plenitude da Justiça
A verdadeira Justiça divina
não é simples retribuição, mas restauração amorosa da ordem ferida.
Deus não destrói o pecador para eliminar o pecado — Ele o transforma pela graça.
“A
misericórdia não suprime a justiça, mas é a plenitude dela.”
(Santo
Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q.30, a.4)
A justiça humana busca
equilibrar contas;
a justiça divina busca
regenerar comunhão.
No Calvário, Cristo não
exigiu compensação, mas ofereceu perdão:
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” (Lucas 23,34)Ali, a Justiça e a Misericórdia se beijaram (Salmo 84,11), e o mal foi desarmado pela entrega.
•
A Cura que impede o mal de
frutificar
A Cura, portanto, é a única
força capaz de impedir que o mal continue a gerar tristeza.
A justiça, por si só, é reativa;
a cura é criativa.
A justiça recompõe o
passado; a cura inaugura o futuro.
Aquele que cura não exige
compensação, mas oferece compaixão.
Assim é Cristo, que toma
sobre Si a culpa alheia para que o mal não mais frutifique.
“A
misericórdia triunfa sobre o juízo.” (Tiago 2,13)
✨ Conclusão
A distinção entre Justiça e Cura que Tolkien traça
é uma verdadeira chave para compreender o coração do Evangelho.
A Lei é necessária, mas apenas a Graça cura.
A Justiça ordena o mundo como ele é;
a Misericórdia o recria como ele deveria ser.
A Cura é o nome teológico do amor que vai além do
direito.
E é nesse ponto que a sabedoria de Tolkien toca a
mais profunda verdade cristã:
A
redenção não é um ato de justiça satisfeita, mas de amor crucificado.
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