quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Interrogativos de hoje e de amanhã

E surgem, espontâneas, algumas questões:

 

·         Como tutelar o profissionalismo e a dignidade dos trabalhadores no campo da comunicação e da informação, juntamente com a dos utentes (usuários) em todo o mundo?

·         Como garantir a interoperabilidade das plataformas?

·         Como fazer com que as empresas que desenvolvem plataformas digitais assumam as suas responsabilidades relativamente ao que divulgam daí tirando os seus lucros, de forma análoga ao que acontece com os editores dos meios de comunicação tradicionais?

·         Como tornar mais transparentes os critérios subjacentes aos algoritmos de indexação e desindexação e aos motores de pesquisa, capazes de exaltar ou cancelar pessoas e opiniões, histórias e culturas?

·         Como garantir a transparência dos processos de informação?

·         Como tornar evidente a paternidade dos escritos e rastreáveis as fontes, evitando o para-vento do anonimato?

·         Como deixar claro se uma imagem ou um vídeo retrata um acontecimento ou o simula?

·         Como evitar que as fontes se reduzam a uma só, a um pensamento único elaborado algoritmicamente?

·         E, ao contrário, como promover um ambiente adequado para salvaguardar o pluralismo e representar a complexidade da realidade?

·         Como podemos tornar sustentável este instrumento poderoso, caro e extremamente energívoro (Que consome muita energia)?

·         Como podemos torná-lo acessível também aos países em vias de desenvolvimento?

 A resposta não está escrita; depende de nós. Compete ao homem decidir se há de tornar-se alimento para os algoritmos ou nutrir o seu coração de liberdade, sem a qual não se cresce na sabedoria. Esta sabedoria amadurece valorizando o tempo e abraçando as vulnerabilidades. Cresce na aliança entre as gerações, entre quem tem memória do passado e quem tem visão de futuro. Somente juntos é que cresce a capacidade de discernir, vigiar, ver as coisas a partir do seu termo. Para não perder a nossa humanidade, procuremos a Sabedoria que existe antes de todas as coisas (cf. Sir 1, 4), que, passando através dos corações puros, prepara amigos de Deus e profetas (cf. Sab 7, 27): há de ajudar-nos também a orientar os sistemas da inteligência artificial para uma comunicação plenamente humana.

 

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO

PARA O LVIII DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS

 

(12 de maio de 2024)

 

https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/communications/documents/20240124-messaggio-comunicazioni-sociali.html

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Fiducia supplicans

 

DEPARTAMENTO DE DOUTRINA DA FÉ

Traduzido do Italiano pelo GOOGLE Translate

Declaração

 Fiducia supplicans

 sobre o significado pastoral das bênçãos

 

 

 

Apresentação

 

Esta Declaração leva em consideração diversas questões recebidas por este Dicastério tanto nos últimos anos como em tempos mais recentes. Para a sua redação, como é habitual, foram consultados especialistas, foi iniciado um processo de redação adequado e o projeto foi discutido no Congresso da Seção Doutrinária do Dicastério. Durante este período de elaboração do documento não faltaram discussões com o Santo Padre. A Declaração foi finalmente submetida ao exame do Santo Padre, que a aprovou com a sua assinatura.

Durante o estudo do tema abordado neste documento, foi dada a conhecer a resposta do Santo Padre às Dubia de alguns Cardeais , que trouxe importantes esclarecimentos para a reflexão aqui oferecida e que representa um elemento decisivo para o trabalho do Dicastério. Dado que «a Cúria Romana é antes de tudo um instrumento de serviço ao sucessor de Pedro» (Constituição Apostólica Praedicate Evangelium , II, 1), o nosso trabalho deve favorecer, juntamente com a compreensão da doutrina perene da Igreja, a recepção do ensinamento do Santo Padre. 

Tal como na já citada resposta do Santo Padre às Dubia de dois Cardeais , esta Declaração permanece firme na doutrina tradicional da Igreja a respeito do casamento, não admitindo qualquer tipo de rito litúrgico ou bênçãos semelhantes a um rito litúrgico que possa criar confusão. O valor deste documento, porém, é oferecer uma contribuição específica e inovadora ao significado pastoral das bênçãos , que nos permite ampliar e enriquecer a compreensão clássica estritamente ligada a uma perspectiva litúrgica. Esta reflexão teológica, baseada na visão pastoral do Papa Francisco, implica um desenvolvimento real em relação ao que foi dito sobre as bênçãos no Magistério e nos textos oficiais da Igreja. Isto explica o fato de o texto ter assumido a tipologia de “Declaração”. 

E é precisamente neste contexto que se pode compreender a possibilidade de abençoar os casais em situação irregular e os casais do mesmo sexo, sem validar oficialmente o seu estatuto nem alterar de forma alguma o ensinamento perene da Igreja sobre o matrimónio. 

Esta Declaração pretende ser também uma homenagem ao Povo fiel de Deus, que adora o Senhor com muitos gestos de profunda confiança na sua misericórdia e que com esta atitude vem constantemente pedir uma bênção à Mãe Igreja.

 

Víctor Manuel Cardeal FERNÁNDEZ

Prefeito

 

 

 

 

Introdução

 

1. A confiança suplicante do Povo fiel de Deus recebe o dom da bênção que brota do coração de Cristo através da sua Igreja. Como nos recorda prontamente o Papa Francisco: «A grande bênção de Deus é Jesus Cristo, é o grande dom de Deus, seu Filho. É uma bênção para toda a humanidade, é uma bênção que salvou a todos nós. Ele é o Verbo eterno com o qual o Pai nos abençoou “quando ainda éramos pecadores” ( Rm 5,8) diz São Paulo: Verbo feito carne e oferecido por nós na cruz”. [1] 

2. Apoiado por uma verdade tão grande e consoladora, este Dicastério levou em consideração diversas questões, tanto formais como informais, sobre a possibilidade de abençoar os casais do mesmo sexo e sobre a possibilidade de oferecer novos esclarecimentos, à luz dos princípios paternos e pastorais. do Papa Francisco, sobre o Responsum ad dubium [2] formulado pela então Congregação para a Doutrina da Fé e publicado em 22 de fevereiro de 2021. 

3. O referido Responsum suscitou reacções muito diversas: alguns acolheram favoravelmente a clareza deste documento e a sua coerência com o ensinamento constante da Igreja; outros não concordaram com a resposta negativa à questão ou não a consideraram suficientemente clara na sua formulação e na fundamentação apresentada na Nota Explicativa anexa . Para responder a estes últimos, com caridade fraterna, parece oportuno retomar o tema e oferecer uma visão que reúna os aspectos doutrinários em coerência com os pastorais, porque «todo ensino da doutrina deve situar-se na atitude evangelizadora que desperta a adesão do coração à proximidade, ao amor e ao testemunho”. [3]

I. A bênção no sacramento do matrimónio 

4. A recente resposta do Santo Padre Francisco à segunda das cinco questões colocadas por dois Cardeais [4] oferece a possibilidade de aprofundar a questão, especialmente nas suas implicações pastorais. Trata-se de evitar “algo que não está sendo reconhecido como casamento”. [5] Portanto, ritos e orações podem criar confusão entre o que é constitutivo do casamento, como “união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta à geração de filhos”, [6] e o que contradiz. Esta crença baseia-se na perene doutrina católica do casamento. Só neste contexto as relações sexuais encontram o seu significado natural, adequado e plenamente humano. A doutrina da Igreja neste ponto permanece firme. 

5. Esta é também a compreensão do matrimónio oferecida pelo Evangelho. Por esta razão, no que diz respeito às bênçãos, a Igreja tem o direito e o dever de evitar qualquer tipo de rito que possa contradizer esta crença ou levar a qualquer confusão. Este é também o sentido do Responsum da então Congregação para a Doutrina da Fé, onde afirma que a Igreja não tem o poder de conceder bênçãos às uniões entre pessoas do mesmo sexo. 

6. Deve-se sublinhar que, precisamente no caso do rito do sacramento do matrimónio, não se trata de uma bênção qualquer, mas do gesto reservado ao ministro ordenado. Neste caso, a bênção do ministro ordenado está diretamente ligada à união específica de um homem e uma mulher que com o seu consentimento estabelecem uma aliança exclusiva e indissolúvel. Isto permite-nos evidenciar melhor o risco de confundir uma bênção, dada a qualquer outra união, com o rito do sacramento do matrimónio.

 

II. O significado das diferentes bênçãos

 

7. A resposta do Santo Padre acima mencionada, por outro lado, convida-nos a fazer um esforço para ampliar e enriquecer o significado das bênçãos. 

8. As bênçãos podem ser consideradas entre os sacramentais mais difundidos e em constante evolução. Com efeito, levam-nos a captar a presença de Deus em todos os acontecimentos da vida e recordam-nos que, mesmo no uso das coisas criadas, o ser humano é convidado a procurar Deus, a amá-lo e a servi-lo fielmente. [7] Por esta razão, as bênçãos são dirigidas às pessoas, aos objetos de culto e devoção, às imagens sagradas, aos lugares de vida, de trabalho e de sofrimento, aos frutos da terra e do trabalho humano, e a todas as realidades criadas que se referem ao Criador, que , com sua beleza, louvem-no e abençoem-no. 

O significado litúrgico dos ritos de bênção 

9. Do ponto de vista estritamente litúrgico, a bênção exige que o que é abençoado esteja em conformidade com a vontade de Deus expressa nos ensinamentos da Igreja. 

10. Com efeito, as bênçãos são celebradas em virtude da fé e visam o louvor de Deus e o proveito espiritual do seu povo. Como explica o Ritual Romano, “para que este propósito seja mais evidente, segundo a tradição antiga as fórmulas de bênção têm sobretudo o objectivo de dar glória a Deus pelos seus dons, pedir os seus favores e derrotar o poder do maligno. no mundo". [8] Portanto, quem invoca a bênção de Deus através da Igreja é convidado a intensificar «as suas disposições, deixando-se guiar por aquela fé na qual tudo é possível» e a confiar «naquele amor que nos leva a observar os mandamentos de Deus". [9] Por isso, se por um lado «é oferecida sempre e em toda a parte a oportunidade de louvar, invocar e agradecer a Deus através de Cristo, no Espírito Santo», por outro a preocupação é que «não se trata de coisas, lugares ou contingências que estão em conflito com a lei ou o espírito do Evangelho”. [10] Esta é uma compreensão litúrgica das bênçãos, pois elas se tornam ritos oficialmente propostos pela Igreja. 

11. Com base nestas considerações, a nota explicativa do referido Responsum da então Congregação para a Doutrina da Fé recorda que quando, com um rito litúrgico específico, se invoca uma bênção sobre algumas relações humanas, é necessário que aquilo que é abençoado é capaz de corresponder aos planos de Deus inscritos na Criação e plenamente revelados por Cristo Senhor. Por esta razão, dado que a Igreja sempre considerou moralmente lícitas apenas as relações sexuais vividas no âmbito do casamento, não tem o poder de conferir a sua bênção litúrgica quando esta, de alguma forma, pode oferecer uma forma de legitimidade moral a um união que presuma ser casamento ou a prática sexual extraconjugal. A substância deste pronunciamento foi reiterada pelo Santo Padre nas suas Respostas às Dubia de dois Cardeais. 

12. Devemos também evitar o risco de reduzir o significado das bênçãos apenas a este ponto de vista, porque isso nos levaria a exigir, para uma simples bênção, as mesmas condições morais que são solicitadas para a recepção dos sacramentos. Este risco exige que esta perspectiva seja ainda mais alargada. De facto, existe o perigo de que um gesto pastoral, tão amado e difundido, esteja sujeito a demasiados pré-requisitos morais, que, com a pretensão de controlo, poderiam ofuscar a força incondicional do amor de Deus sobre a qual funda o gesto de bênção. 

13. Precisamente a este respeito, o Papa Francisco exortou-nos a «não perder a caridade pastoral, que deve permear todas as nossas decisões e atitudes» e a evitar «ser juízes que apenas negam, rejeitam, excluem». [11] Respondemos então à sua proposta desenvolvendo uma compreensão mais ampla das bênçãos. 

Bênçãos nas Sagradas Escrituras 

14. Para refletir sobre as bênçãos, reunindo diferentes pontos de vista, precisamos deixar-nos iluminar antes de tudo pela voz da Sagrada Escritura. 

15. «Que o Senhor te abençoe e te guarde. Que o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti. Que o Senhor volte sobre ti o seu rosto e te conceda a paz” ( Nm 6, 24-26). Esta “bênção sacerdotal” que encontramos no Antigo Testamento, precisamente no livro dos Números, tem um carácter “descendente”, pois representa a invocação da bênção que desce de Deus sobre o homem: constitui um dos mais antigos textos da divina bênção. Depois há um segundo tipo de bênção que encontramos nas páginas bíblicas, aquela que "sobe" da terra ao céu, em direção a Deus. A bênção equivale, portanto, a louvar, a celebrar, a agradecer a Deus pela sua misericórdia e fidelidade, pelas maravilhas ele criou e por tudo o que aconteceu por sua vontade: “Bendize ao Senhor, minha alma; que tudo o que há em mim bendiga o seu santo nome” ( Sl 103, 1). 

16. A Deus que abençoa, também respondemos com bênção. Melquisedeque, rei de Salém, abençoa Abraão (ver Gn 14,19); Rebeca é abençoada por sua família, pouco antes de se tornar noiva de Isaque (cf. Gn 24, 60), que, por sua vez, abençoa seu filho Jacó (cf. Gn 27, 27). Jacó abençoa Faraó (ver Gn 47, 10), seus sobrinhos Efraim e Manassés (ver Gn 48, 20) e todos os seus doze filhos (ver Gn 49, 28). Moisés e Arão abençoam a comunidade (ver Êx 39, 43; Lv 9, 22). Os chefes de família abençoam os filhos por ocasião dos casamentos, antes de embarcarem em viagem, na iminência da morte. Estas bênçãos parecem, portanto, ser uma dádiva superabundante e incondicional. 

17. A bênção presente no Novo Testamento mantém essencialmente o mesmo significado do Antigo Testamento. Encontramos o dom divino que “desce”, o agradecimento do homem que “sobe” e a bênção concedida pelo homem que “se estende” aos seus semelhantes. Zacarias, depois de recuperar o uso da fala, abençoa o Senhor por suas obras maravilhosas (ver Lucas 1:64). O idoso Simeão, enquanto segura nos braços o recém-nascido Jesus, bendiz a Deus por lhe ter concedido a graça de contemplar o Messias salvador e, portanto, abençoa os próprios pais Maria e José (cf. Lc 2,34). Jesus abençoa o Pai, no famoso hino de louvor e de júbilo que lhe é dirigido: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra” ( Mt 11, 25). 

18. Em continuidade com o Antigo Testamento, também em Jesus a bênção não é apenas ascendente, em referência ao Pai, mas também descendente, derramada sobre os outros como gesto de graça, proteção e bondade. O próprio Jesus implementou e promoveu esta prática. Por exemplo, ele abençoa as crianças: «E tomando-as nos braços, abençoou-as, impondo-lhes as mãos» ( Mc 10, 16). E a vida terrena de Jesus terminará com uma bênção final reservada aos Onze, pouco antes de ascender ao Pai: «E levantando as mãos, abençoou-os. Enquanto os abençoava, separou-se deles e foi elevado ao céu” ( Lc 24, 50-51). A última imagem de Jesus na terra são as mãos levantadas, no ato de abençoar. 

19. No seu mistério de amor, através de Cristo, Deus comunica à sua Igreja o poder de abençoar. Concedida por Deus aos seres humanos e por eles concedida aos outros, a bênção se transforma em inclusão, solidariedade e pacificação. É uma mensagem positiva de conforto, cuidado e encorajamento. A bênção expressa o abraço misericordioso de Deus e a maternidade da Igreja que convida os fiéis a terem os mesmos sentimentos de Deus para com os seus irmãos e irmãs. 

Uma compreensão teológico-pastoral das bênçãos 

20. Quem pede uma bênção mostra-se necessitado da presença salvífica de Deus na sua história e quem pede uma bênção à Igreja reconhece esta como o sacramento da salvação que Deus oferece. Buscar a bênção na Igreja é admitir que a vida eclesial brota do ventre da misericórdia de Deus e nos ajuda a seguir em frente, a viver melhor, a responder à vontade do Senhor. 

21. Para nos ajudar a compreender o valor de uma abordagem mais pastoral das bênçãos, o Papa Francisco exortou-nos a contemplar, com uma atitude de fé e de misericórdia paterna, o fato de que «quando você pede uma bênção, você está expressando um pedido de ajuda a Deus, um apelo para poder viver melhor, uma confiança num Pai que pode nos ajudar a viver melhor”. [12] Este pedido deve ser, de qualquer forma , valorizado, acompanhado e recebido com gratidão. As pessoas que vêm espontaneamente pedir uma bênção mostram com este pedido a sua sincera abertura à transcendência, a confiança do seu coração que não depende apenas das suas próprias forças, a sua necessidade de Deus e o desejo de escapar às medidas estreitas deste fechado mundo dentro dos seus limites. 

22. Como nos ensina Santa Teresa do Menino Jesus, além desta confiança «não há outro caminho a seguir para ser conduzido ao Amor que tudo dá. Com confiança, a fonte da graça transborda em nossas vidas […]. A atitude mais adequada é colocar a confiança do coração fora de nós mesmos: na misericórdia infinita de um Deus que ama sem limites [...]. O pecado do mundo é imenso, mas não é infinito. Pelo contrário, o amor misericordioso do Redentor, sim, é infinito”. [13] 

23. Quando estas expressões de fé são consideradas fora do quadro litúrgico, encontramo-nos num espaço de maior espontaneidade e liberdade, mas «a opcionalidade dos exercícios piedosos não deve, portanto, significar pouca consideração ou desprezo por eles. O caminho a seguir é valorizar correta e sabiamente as muitas riquezas da piedade popular, o potencial que ela possui”. [14] As bênçãos tornam-se assim um recurso pastoral a explorar e não um risco ou um problema. 

24. Consideradas do ponto de vista da pastoral popular, as bênçãos devem ser avaliadas como atos de devoção que «encontram o seu espaço fora da celebração da Eucaristia e dos outros sacramentos […]. A linguagem, o ritmo, a progressão, os acentos teológicos da piedade popular diferem dos correspondentes às ações litúrgicas”. Pela mesma razão «devemos evitar introduzir métodos de “celebração litúrgica” nos exercícios piedosos, que devem preservar o seu estilo, a sua simplicidade, a sua linguagem própria». [15] 

25. Além disso, a Igreja deve evitar basear a sua prática pastoral na fixidez de certos esquemas doutrinais ou disciplinares, especialmente quando eles «dão origem a um elitismo narcisista e autoritário, onde em vez de evangelizar outros, outros são analisados ​​e classificados, e em vez de facilitando o acesso à graça, a energia é desperdiçada no controle." [16] Portanto, quando as pessoas invocam uma bênção, uma análise moral exaustiva não deve ser uma pré-condição para concedê-la. Não devemos exigir deles perfeição moral prévia. 

26. Nesta perspectiva, as Respostas do Santo Padre ajudam a explorar melhor, do ponto de vista pastoral, o pronunciamento formulado pela então Congregação para a Doutrina da Fé em 2021, pois efetivamente convidam ao discernimento em relação à possibilidade de «formas de bênção, solicitadas por uma ou mais pessoas, que não transmitam uma concepção errónea do matrimónio» [17] e que tenham também em conta o facto de que, em situações moralmente inaceitáveis ​​do ponto de vista objectivo, «a pastoral a caridade exige que não tratemos simplesmente como “pecadores” outras pessoas cuja culpa ou responsabilidade pode ser mitigada por vários fatores que influenciam a imputabilidade subjetiva”. [18] 

27. Na catequese citada no início desta Declaração, o Papa Francisco propôs uma descrição deste tipo de bênçãos que são oferecidas a todos, sem pedir nada. Vale a pena ler estas palavras com o coração aberto, pois elas nos ajudam a compreender o significado pastoral das bênçãos oferecidas sem condições: «É Deus quem abençoa. Nas primeiras páginas da Bíblia há uma repetição contínua de bênçãos. Deus abençoa, mas os homens também abençoam, e logo se descobre que a bênção possui uma força especial, que acompanha quem a recebe ao longo da vida, e dispõe o coração humano a deixar-se mudar por Deus [...]. Então somos mais importantes para Deus do que todos os pecados que podemos cometer, porque Ele é pai, é mãe, é puro amor, Ele nos abençoou para sempre. E ele nunca deixará de nos abençoar. Uma experiência poderosa é a de ler estes textos bíblicos de bênção numa prisão ou numa comunidade de recuperação. Fazei com que aquelas pessoas que permanecem bem-aventuradas, apesar dos seus graves erros, sintam que o Pai celeste continua a querer o seu bem e esperem que finalmente se abram ao bem. Se até os parentes mais próximos os abandonaram, porque agora os consideram irrecuperáveis, para Deus ainda são crianças”. [19] 

28. São diversas as ocasiões em que as pessoas se aproximam espontaneamente para pedir uma bênção, tanto nas peregrinações, como nos santuários, e até na rua, quando encontram um sacerdote. A título de exemplo, podemos referir o livro litúrgico De Benedictionibus que oferece uma série de ritos de bênção para as pessoas: os idosos, os doentes, os participantes na catequese ou num encontro de oração, os peregrinos, os que empreendem uma viagem, os grupos e associações de voluntários, etc Estas bênçãos são dirigidas a todos, ninguém pode ser excluído delas. Nas premissas do Rito de Bênção do Idoso , por exemplo, afirma-se que o objetivo da bênção «é expressar aos idosos um testemunho fraterno de respeito e gratidão, e agradecer ao Senhor junto com eles pelos benefícios receberam dele e pelas boas ações que realizaram com sua ajuda." [20] Neste caso o objeto da bênção é a pessoa do idoso, por quem e com quem se dão graças a Deus pelo bem que fez e pelos benefícios recebidos. Ninguém pode ser impedido de dar graças e todos, mesmo que vivam em situações não ordenadas pelo desígnio do Criador, têm elementos positivos pelos quais louvar o Senhor.

 29. Do ponto de vista da dimensão ascendente, quando se toma consciência dos dons do Senhor e do seu amor incondicional, mesmo em situações de pecado, particularmente quando uma oração é ouvida, o coração do crente eleva o seu louvor a Deus e o abençoa. Esta forma de bênção não é vedada a ninguém. Todos – individualmente ou em união com outros – podem elevar o seu louvor e gratidão a Deus. 

30. Mas o sentido popular de bênção também inclui o valor da bênção descendente. Se «não convém a uma Diocese, a uma Conferência Episcopal ou a qualquer outra estrutura eclesial activar constante e oficialmente procedimentos ou ritos para todo o tipo de questões», [21] a prudência e a sabedoria pastoral podem sugerir que, evitando formas graves de escândalo ou confusão entre os fiéis, o ministro ordenado une-se à oração daquelas pessoas que, mesmo numa união que em nada se compara ao casamento, desejam confiar-se ao Senhor e à sua misericórdia, invocar a sua ajuda, ser guiados para maiores compreensão do seu plano de amor e de verdade. 

III. As bênçãos dos casais em situação irregular e dos casais do mesmo sexo 

31. No horizonte aqui traçado reside a possibilidade de bênçãos de casais em situação irregular e de casais do mesmo sexo, cuja forma não deve encontrar qualquer fixação ritual por parte das autoridades eclesiais, para não produzir confusão com a bênção própria de o sacramento do casamento. Nestes casos, concede-se uma bênção que não só tem um valor ascendente, mas que é também a invocação de uma bênção descendente do próprio Deus sobre aqueles que, reconhecendo-se desamparados e necessitados da sua ajuda, não reivindicam a legitimação da sua ajuda. próprio status , mas imploram que tudo o que é verdadeiramente bom e humanamente válido em suas vidas e relacionamentos seja investido, curado e elevado pela presença do Espírito Santo. Essas formas de bênção expressam uma súplica a Deus para que conceda as ajudas que vêm de os impulsos do seu Espírito - que a teologia clássica chama de "graças atuais" - para que as relações humanas possam amadurecer e crescer na fidelidade à mensagem do Evangelho, libertar-se das suas imperfeições e fragilidades e exprimir-se na dimensão cada vez maior do amor divino. 

32. A graça de Deus, de facto, atua na vida daqueles que não se dizem justos, mas se reconhecem humildemente como pecadores como todos os outros. Ela é capaz de orientar tudo segundo os planos misteriosos e imprevisíveis de Deus. Por isso, com sabedoria e maternidade incansáveis, a Igreja acolhe todos aqueles que se aproximam de Deus com um coração humilde, acompanhando-os com aquelas ajudas espirituais que permitem a todos compreender e compreender plenamente. Realizar a vontade de Deus em sua existência. [22] 

33. Trata-se de uma bênção que, embora não incluída num rito litúrgico, [23] une a oração de intercessão à invocação da ajuda de Deus a quantos se dirigem humildemente a Ele. Deus nunca rejeita ninguém que se aproxima dele! Em última análise, a bênção oferece às pessoas um meio para aumentar a sua confiança em Deus. O pedido de bênção expressa e alimenta a abertura à transcendência, a piedade, a proximidade de Deus em mil circunstâncias concretas da vida, e isso não é pouca coisa no mundo. Vivemos no. É uma semente do Espírito Santo que deve ser cuidada e não impedida. 

34. A própria liturgia da Igreja convida-nos a esta atitude confiante, mesmo no meio dos nossos pecados, falta de mérito, fraquezas e confusões, como evidencia esta bela oração recolhida extraída do Missal Romano: «Deus todo-poderoso e eterno, que concedes as orações do teu povo além de todo desejo e de todo mérito, derrama sobre nós a tua misericórdia: perdoa o que a consciência teme e acrescenta o que a oração não ousa esperar” (XXVII Domingo do Tempo Comum). Quantas vezes, de facto, através de uma simples bênção do pastor, que neste gesto não pretende sancionar nem legitimar nada, as pessoas podem experimentar a proximidade do Pai “tudo além do desejo e de todo mérito”. 

35. Portanto, a sensibilidade pastoral dos ministros ordenados também deve ser educada para realizar espontaneamente bênçãos que não se encontram na Benção. 

36. Neste sentido, é essencial compreender a preocupação do Papa, para que estas bênçãos não ritualizadas não deixem de ser um simples gesto que constitui um meio eficaz para aumentar a confiança em Deus por parte das pessoas que as pedem, impedindo que se tornem um ato litúrgico ou semilitúrgico, semelhante a um sacramento. Isto constituiria um grave empobrecimento, porque submeteria um gesto de grande valor na piedade popular a um controlo excessivo, que privaria os ministros da liberdade e da espontaneidade no acompanhamento pastoral da vida das pessoas. 

37. A este propósito, vêm à mente as seguintes palavras do Santo Padre, já parcialmente citadas: «As decisões que, em certas circunstâncias, podem fazer parte da prudência pastoral não devem necessariamente tornar-se uma norma. Ou seja, não convém que uma Diocese, uma Conferência Episcopal ou qualquer outra estrutura eclesial ative constante e oficialmente procedimentos ou ritos para todo tipo de questões [...]. O Direito Canônico não deve e não pode abranger tudo, nem as Conferências Episcopais devem pretender fazê-lo com os seus diversos documentos e protocolos, porque a vida da Igreja passa por muitos canais, além dos normativos”. [24] Assim, o Papa Francisco recordou que tudo “que faz parte de um discernimento prático numa situação particular não pode ser elevado à categoria de norma”, porque isso “daria origem a uma casuística insuportável”. [25] 

38. Por esta razão, não deve ser promovido nem previsto um ritual de bênção de casais em situação irregular, mas também não deve ser evitada ou proibida a proximidade da Igreja a qualquer situação em que a ajuda de Deus é solicitada através de uma situação irregular. . Na breve oração que pode preceder esta bênção espontânea, o ministro ordenado poderá pedir-lhes paz, saúde, espírito de paciência, diálogo e ajuda mútua, mas também a luz e a força de Deus para poder cumprir plenamente a sua vontade. . 

39. Em todo o caso, precisamente para evitar qualquer forma de confusão ou escândalo, quando a oração de bênção, embora expressa fora dos ritos previstos nos livros litúrgicos, for solicitada por um casal em situação irregular, esta bênção nunca será realizada ao mesmo tempo que os ritos de união civil e nem mesmo em relação a eles. Nem com roupas, gestos ou palavras típicas de um casamento. O mesmo se aplica quando a bênção é solicitada por um casal do mesmo sexo. 

40. Esta bênção pode, pelo contrário, encontrar o seu lugar noutros contextos, como uma visita a um santuário, um encontro com um sacerdote, uma oração recitada em grupo ou durante uma peregrinação. De facto, através destas bênçãos que são concedidas não através das formas rituais da liturgia, mas antes como expressão do coração materno da Igreja, semelhantes àquelas que em última análise emanam das entranhas da piedade popular, a intenção não é legitimar tudo menos abrir a vida a Deus, pedir a sua ajuda para viver melhor, e também invocar o Espírito Santo para que os valores do Evangelho possam ser vividos com maior fidelidade. 

41. O que foi dito nesta Declaração sobre as bênçãos dos casais do mesmo sexo é suficiente para orientar o discernimento prudente e paternal dos ministros ordenados a este respeito. Além das indicações acima, não devemos, portanto, esperar por outras respostas sobre possíveis formas de regular detalhes ou aspectos práticos relativos a bênçãos deste tipo. [26] 

4. A Igreja é o sacramento do amor infinito de Deus 

42. A Igreja continua a elevar aquelas orações e súplicas que o próprio Cristo, com grandes gritos e lágrimas, ofereceu nos dias da sua vida terrena (cf. Hb 5, 7) e que por isso mesmo gozam de particular eficácia. Desta forma, «não só com a caridade, com o exemplo e com as obras de penitência, mas também com a oração, a comunidade eclesial exerce a sua função materna de levar as almas a Cristo». [27] 

43. A Igreja é, portanto, sacramento do amor infinito de Deus. Portanto, mesmo quando a relação com Deus está obscurecida pelo pecado, pode-se sempre pedir uma bênção, estendendo-lhe a mão, como fez Pedro na tempestade, quando chorou. a Jesus: «Senhor, salva-me!» ( Mt 14, 30). Desejar e receber uma bênção pode ser a melhor coisa possível em algumas situações. O Papa Francisco recorda-nos que “um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode agradar mais a Deus do que a vida exteriormente correta de quem passa os seus dias sem enfrentar grandes dificuldades”. [28] Desta forma, «o que brilha é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo, que morreu e ressuscitou ». [29] 

44. Qualquer bênção será uma oportunidade para um renovado anúncio do querigma, um convite a aproximar-nos cada vez mais do amor de Cristo. O Papa Bento XVI ensinou: «Como Maria, a Igreja é mediadora da bênção de Deus para o mundo: recebe-a acolhendo Jesus e transmite-a trazendo Jesus. Ele é a misericórdia e a paz que o mundo não pode dar a si mesmo e da qual não pode dar-se, sempre precisou disso, como e mais que pão." [30] 

45. Tendo em conta o que foi dito acima, seguindo o ensinamento autorizado do Santo Padre Francisco, este Dicastério pretende finalmente recordar que «esta é a raiz da mansidão cristã, a capacidade de se sentir bem-aventurado e a capacidade de abençoar [.. .]. Este mundo precisa de bênçãos e podemos dar e receber bênçãos. O Pai nos ama, e tudo o que nos resta é a alegria de abençoá-lo e a alegria de agradecê-lo e de aprender com ele a abençoar”. [31] Assim, cada irmão e cada irmã poderão sempre sentir-se peregrinos na Igreja, sempre mendigos, sempre amados e, apesar de tudo, sempre abençoados.

 

Víctor Manuel Cardeal FERNÁNDEZ

Prefeito

 

Dom Armando MATTEO

Secretário da Seção Doutrinária

 

Ex Audientia Morre em 18 de dezembro de 2023

Francisco

 

[1] Francisco, Catequese sobre a oração: a bênção (2 de dezembro de 2020), L'Osservatore Romano , 2 de dezembro de 2020, p. 8. 

[2] Ver Congregatio pro Doctrina Fidei, « Responsum» ad «dubium» de benedictione Unioneem Personarum eiusdem sexus et Nota Explicativa , AAS 113 (2021), 431-434. 

[3] Francisco, Exortação. Ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), n. 42 , AAS 105 (2013), 1037-1038. 

[4] Ver Francisco, Respostas às Dubia propostas pelos Cardenales (11 de julho de 2023). 

[5] Ibidem , ad dubium 2, c. 

[6] Ibidem , ad dubium 2, a. 

[7] Ver Rituale Romanum ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticano II instauratum auctoritate Ioannis Pauli PP. II promulgatum , De Benedictionibus , Editio typica , Praenotanda , Typis Polyglottis Vaticanis, Civitate Vaticana 1985, n. 12. 

[8] Ibidem, n. 11: «Quo autem clarius hoc pateat, antiqua extraditione, formulas benedictionum eo spectant ut imprimis Deum pro eius donis glorificent eiusque impetrent beneficia atque maligni potestatem in mundo compescant». 

[9] Ibid., n. 15: «Quare illi qui benedictionem Dei per Ecclesiam expostulant, dispositiones suas ea fide confirment, cui omnia sunt possibilia; spe innitantur, quae não confundit; caritate praesertim vivificentur, quae mandata Dei servinda urget». 

[10] Ibidem, n. 13: «Semper ergo et ubique occasio praebetur Deum per Christum in Spiritu Sancto laudandi, invocandi eique gratias reddendi, dummodo agatur de rebus, locis, vel adiunctis quae normae vel spiritui Evangelii non contradicant». 

[11] Francisco, Respostas às Dubia propostas pelos Cardenales , ad dubium 2, d. 

[12] Ibidem , ad dubium 2, e. 

[13] Francisco, Exortação. Ap. C'est la confiance (15 de outubro de 2023), nos. 2, 20, 29. 

[14] Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Diretório sobre piedade popular e liturgia. Princípios e diretrizes , Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 2002, n. 12. 

[15] Ibidem , n. 13. 

[16] Francisco, Exortação. Ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), n. 94 , AAS 105 (2013), 1060. 

[17] Francisco, Respostas às Dubia propostas pelos Cardenales , ad dubium 2, e. 

[18] Ibidem , ad dubium 2, f. 

[19] Francisco, Catequese sobre a oração: a bênção (2 de dezembro de 2020), L'Osservatore Romano , 2 de dezembro de 2020, p. 8. 

[20] De Benedictionibus , n. 258: «Haec benedictio ad hoc tendit ut ipsi senes a fratribus testimonium accipiant reverentiae grataeque mentis, dum simul cum ipsis Domino gratias reddimus pro beneficiis ab eo acceptis et pro bonis operibus e o adjuvant peractis». 

[21] Francisco, Respostas às Dubia propostas pelos Cardenales , ad dubium 2, g. 

[22] Ver Francisco, Exortação. Ap. Amoris laetitia pós-sinodal (19 de março de 2016), n. 250 , AAS 108 (2016), 412-413. 

[23] Cf. Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Diretório sobre a piedade popular e a liturgia , n. 13: «A diferença objetiva entre os exercícios piedosos e as práticas devocionais no que diz respeito à Liturgia deve encontrar visibilidade na expressão cúltica […] os atos de piedade e de devoção encontram o seu espaço fora da celebração da Eucaristia e de outros sacramentos». 

[24] Francisco, Respostas às Dubia propostas pelos Cardenales , ad dubium 2, g. 

[25] Francisco, Exortação. Ap. Amoris laetitia pós-sinodal (19 de março de 2016), n. 304 , AAS 108 (2016), 436. 

[26] Ver ibid . 

[27] Officium Divinum ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticano II instauratum auctoritate Pauli PP. VI promulgatum , Liturgia Horarum iuxta Ritum Romanum, Institutio Generalis de Liturgia Horarum , Editio typica alte, Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 1985, n. 17: «Itaque non-off caritate, exemplo et paenitentiae operibus, sed etiam oratione ecclesialis communitas verum erga animas ad Christum aducendas maternum munus exercet». 

[28] Francisco, Exortação. Ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), n. 44 , AAS 105 (2013), 1038-1039. 

[29] Ibidem , n. 36 , AAS 105 (2013), 1035. 

[30] Bento XVI, Homilia da Santa Missa na Solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus, XLV Dia Mundial da Paz , Basílica Vaticana (1 de janeiro de 2012), Ensinanças VIII, 1 (2012), 3. 

[31] Francisco, Catequese sobre a oração: a bênção (2 de dezembro de 2020), L'Osservatore Romano , 2 de dezembro de 2020, p. 8. 

 

 

 

 

Comunicado à imprensa sobre a recepção de Fiducia supplicans

DICASTÉRIO PARA A DOUTRINA DA FÉ

Comunicado àimprensa sobre a recepção de Fiducia supplicans

 4 de janeiro de 2024

 

 

Escrevemos este Comunicado à imprensa para ajudar a esclarecer a recepção de Fiducia supplicans, recomendando ao mesmo tempo uma leitura completa e atenta da citada Declaração para compreender melhor o significado de sua proposta.

 

1.    Doutrina

 

Os compreensíveis pronunciamentos de algumas Conferências Episcopais sobre o documento Fiducia supplicans têm o valor de evidenciar a necessidade de um período mais longo de reflexão pastoral. Quanto foi expresso por essas Conferências Episcopais não pode ser intrepretado como uma oposição doutrinal, porque o documento é claro e clássico a respeito do matrimônio e da sexualidade. Existem diversas frases fortes na Declaração que não deixam dúvidas:

«A presente Declaração permanece firme quanto à doutrina tradicional da Igreja sobre o matrimônio, não admintindo nenhum tipo de rito litúrgico ou de bênçãos semelhantes a um rito litúrgico que possam criar confusão». Age-se diante de casais em situação irregular «sem convalidar oficialmente o seu status ou modificar de algum modo o ensinamento perene da Igreja sobre o matrimônio» (Apresentação).

«São inadmissíveis ritos e orações que possam criar confusão entre aquilo que é constitutivo do matrimônio, como “união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta à geração de filhos” e aquilo que o contradiz. Esta convicção é fundada sobre a perene doutrina católica do matrimônio. Somente neste contexto as relações sexuais encontram o seu sentido natural, adequado e plenamente humano. A doutrina da Igreja sobre este ponto permanece firme» (4).

«Tal é também o sentido do Responsum da então Congregação para a Doutrina da Fé, onde se afirma que a Igreja não tem o poder de conceder a bênção a uniões entre pessoas do mesmo sexo» (5).

«Dado que a Igreja desde sempre considerou moralmente lícitas somente aquelas relações sexuais  que são vividas ao interno do matrimônio, ela não tem o poder de conferir a sua bênção litúrgica quando esta, de qualquer modo, possa oferecer uma forma de legitimação moral a uma união que presuma ser um matrimônio ou a uma prática sexual extra-matrimonial» (11).

Evidentemente, não há espaço para se tomar distância doutrinal desta Declaração ou para considerá-la herética, contrária à Tradição da Igreja ou blasfema.

 

2.    Recepção prática

 

Alguns Bispos, todavia, exprimem-se em modo particular a respeito de um aspecto prático: as possíveis bênçãos de casais em situação irregular. A Declaração contém a proposta de breves e simples bênçãos pastorais (não litúrgicas, nem ritualizadas) de casais irregulares (não das uniões), sublinhando que se trata de bênçãos sem forma litúrgica, que não aprovam nem justificam a situação em que se encontram essas pessoas.

Os documentos do Dicastério para a Dourina da Fé, como Fiducia supplicans, podem requerer, nos seus aspectos práticos, mais ou menos tempo para a sua aplicação, segundo os contextos locais e o discernimento de cada Bispo diocesano com a sua Diocese. Em alguns lugares não existem dificuldades para uma aplicação imediata, em outros há a necessidade de não inovar nada enquanto se toma todo o tempo necessário para a leitura e a interpretação.

Alguns Bispos, por exemplo, estabeleceram que cada sacerdote deve realizar o discernimento, mas poderá dar essas bênçãos apenas de modo privado. Nada disso é problemático, se é expresso com o devido respeito por um texto assinado e aprovado pelo próprio Sumo Pontífice, buscando de algum modo acolher a reflexão nele contida.

Cada Bispo local, em virtude do próprio ministério, tem sempre o poder do discernimento in loco, isto é, naquele lugar concreto que ele melhor que outros conhece, porque é o seu rebanho. A prudência e a atenção ao contexto eclesial e à cultura local poderiam admitir diversas modalidades de aplicação, mas não uma negação total ou definitiva deste caminho que é proposto aos sacerdotes.

 

3.    A situação delicada de alguns países

 

O caso de algumas Conferências Episcopais deve ser compreendido no próprio contexto. Em diversos países existem fortes questões culturais e até mesmo legais que requerem tempo e estratégias pastorais a longo prazo.

Se existem legislações que condenam à prisão e, em alguns lugares, à tortura e até à morte o simples fato de declarar-se homossexual, entende-se que seria imprudente uma bênção. É evidente que os Bispos não queiram expor as pessoas homossexuais à violência. Permanece importante, porém, que estas Conferências Episcopais não sustentem uma doutrina diferente daquela da Declaração aprovada pelo Papa, enquanto é a doutrina de sempre, mas sobretudo que proponham a necessidade do estudo e do discernimento para agir com prudência pastoral em um tal contexto.

Na verdade, não são poucos os países que em diversa medida condenam, proíbem e criminalizam a homossexualidade. Nestes casos, além da questão das bênçãos, existe uma tarefa pastoral de grande amplitude, que inclui formação, defesa da dignidade humana, ensinamento da Doutrina Social da Igreja e diversas estratégias que não admitem pressa.

 

4.    A verdadeira novidade do documento

 

A verdadeira novidade desta Declaração, que requer um generoso esforço de recepção, do qual ninguém deveria declarar-se excluído, não é a possibilidade de abençoar casais irregulares. É o convite a distinguir duas formas diferentes de bênção: “litúrgicas ou ritualizadas” e “espontâneas ou pastorais”. Na Apresentação é explicado claramente que «o valor deste documento é […] aquele de oferecer uma contribuição específica e inovativa ao significado pastoral das bênçãos, que permite ampliar e enriquecer sua compreensão clássica, estreitamente ligada a uma perspectiva litúrgica». Esta «reflexão teológica, baseada sobre a visão pastoral de Papa Francisco, implica um verdadeiro desenvolvimento a respeito de quanto foi dito sobre as bênçãos no Magistério e nos textos oficiais da Igreja».

Como pano de fundo, encontra-se a avaliação positiva da “pastoral popular” que aparece em muitos textos do Santo Padre. Neste contexto, o Santo Padre nos convida a valorizar a fé do Povo de Deus, que mesmo em meio aos seus pecados sai da imanência e abre o seu coração para pedir a ajuda de Deus.

Por esta razão, mais que pela bênção a casais irregulares, o texto do Dicastério adotou a elevada forma de uma “Declaração”, que representa muito mais que um responsum ou que uma carta. O tema central, que convida particularmente a um aprofundamento que enriqueça a prática pastoral, é a compreensão mais ampla das bênçãos e a proposta de aumentar as bênçãos pastorais, que não exigem as mesmas condições daquelas realizadas num contexto litúrgico ou ritual. Em consequência, para além da polêmica, o texto requer um esforço de reflexão serena, feita com coração de pastor, livre de toda ideologia.

Mesmo que algum Bispo considere prudente para o momento não dar estas bênçãos, permanece verdadeiro que todos necessitamos crescer na convicção de que as bênçãos não ritualizadas não são uma consagração da pessoa ou do casal que as recebe, não justificam todas as suas ações, não ratificam a vida que leva. Quando o Papa nos pediu para crescer na compreensão mais ampla das bênçãos pastorais, ele nos propôs pensar um modo de abençoar que não implique tantas condições para realizar este gesto simples de proximidade pastoral, que é um meio para promover a abertura a Deus em meio às mais diversas circunstâncias.

 

5.    Como se apresentam concretamente estas “bênçãos pastorais”?

 

Para distinguir-se claramente das bênçãos litúrgicas ou ritualizadas, as “bênçãos pastorais” devem ser sobretudo muito breves (cfr. n. 28). Trata-se de bênçãos de poucos segundos, sem uso do Ritual de Bênçãos. Se se aproximam juntas duas pessoas para pedi-la, simplesmente implora-se ao Senhor paz, saúde e outros bens para estas duas pessoas que as pedem. Ao mesmo tempo, implora-se que possam viver o Evangelho de Cristo em plena fidelidade e que o Espírito Santo as livre de tudo que não corresponde à vontade divina e de tudo que requer purificação.

Esta forma de bênção não ritualizada, com a simplicidade e a brevidade de sua forma, não pretende justificar algo que não seja moralmente aceitável. Obviamente, não é um matrimônio, nem mesmo uma “aprovação”, nem a ratificação de coisa alguma. É unicamente a resposta de um pastor a duas pessoas que pedem a ajuda de Deus. Por isso, neste caso, o pastor não põe condições e não quer conhecer a vida íntima dessas pessoas.

Dado que alguns manifestaram dúvidas sobre como poderiam ser estas bênçãos, vejamos um exemplo concreto: imaginemos que em meio a uma grande peregrinação um casal de divorciados  em nova união diga ao sacerdote: “Por favor, nos dê uma bênção, não conseguimos encontrar trabalho, ele está muito doente, não temos uma casa, a vida está se tornando muito pesada: que Deus nos ajude!”.

Neste caso, o sacerdote pode recitar uma simples oração como esta: «Senhor, olha estes teus filhos, concede-lhes saúde, trabalho, paz e ajuda recíproca. Livra-os de tudo aquilo que contradiz o teu Evangelho e concede-lhes viver segundo a tua vontade. Amém». E conclui com o sinal da cruz sobre cada um deles.

Trata-se de 10 ou 15 segundos. Faz sentido negar este tipo de bênção a essas duas pessoas que a imploram? Não é o caso de sustentar a sua fé, pouca ou muita que seja; de ajudar a sua fraqueza com a bênção divina e de dar um canal a esta abertura à transcendência, que poderia conduzi-las a ser mais fiéis ao Evangelho?

Para afastar equívocos, a Declaração acrescenta que, quando a bênção é pedida por um casal em situação irregular, «ainda que expressa fora dos ritos previstos pelos livros litúrgicos […] esta bênção jamais será realizada conjuntamente a ritos civis de união e nem mesmo em relação a estes. Nem sequer com as roupas, gestos ou palavras próprios de um matrimônio. O mesmo vale quando a bênção é pedida por um casal do mesmo sexo» (39). É claro, portanto, que ela não deve acontecer num lugar importante do edifício sacro ou diante do altar, porque isto causaria confusão.

Por esta razão, cada Bispo na sua Diocese é autorizado pela Declaração Fiducia supplicans a ativar este tipo de bênçãos simples, com todas as recomendações de prudência e de atenção, mas em nenhum modo é autorizado a propor ou a ativar bênçãos que possam assemelhar-se a um rito litúrgico.

 

6.    Catequese

 

Em alguns lugares, talvez será necessária uma catequese que ajude a todos a entender que este tipo de bênção não é uma ratificação da vida que levam aqueles que a imploram. Menos ainda é uma absolvição, enquanto estes gestos estão longe de ser um sacramento ou um rito. São simples expressão de proximidade pastoral que não propõem as mesmas exigências de um sacramento nem de um rito formal. Deveremos habituar-nos todos a aceitar o fato que, se um sacerdote dá este tipo de bênçãos simples, não é um herético, não ratifica nada, não está negando a doutrina católica.

Podemos ajudar o Povo de Deus a descobrir que este tipo de bênção é um simples canal pastoral que ajuda as pessoas a manifestar a própria fé, ainda que sejam grandes pecadores. Por isso, ao dar esta bênção a duas pessoas que juntas se aproximam para implorá-la espontaneamente, não as estamos consagrando, nem nos estamos congratulando com elas, nem estamos aprovando o seu modo de união. Na verdade, o mesmo acontece quando abençoamos as pessoas individualmente, no sentido de que o indivíduo que pede uma bênção – não a absolvição – poderia ser um grande pecador, mas não por isso negamos este gesto paterno em meio à sua luta para sobreviver.

Se isto é esclarecido graças a uma boa catequese, podemos livrar-nos do medo de que nossas bênçãos exprimam algo de inadequado. Podemos ser ministros mais livres e talvez mais próximos e fecundos, com um ministério pleno de gestos de paternidade e de proximidade, sem medo de ser mal-interpretados.

Peçamos ao Senhor recém-nascido que derrame sobre todos uma generosa e graciosa bênção, para podermos viver um santo e feliz 2024.

 

Víctor Manuel Card. FERNÁNDEZ

Prefeito

 

Mons. Armando MATTEO

Secretário para a Seção Doutrinal


https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_ddf_doc_20240104_comunicato-fiducia-supplicans_po.html#

 

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Uma questão de reciprocidade:

 

Há uma tendência de se impor o que desejamos, mas não nos posicionamos na pele do outro, afinal EU sou o que precisa de RECONHECIMENTO, RESPEITO, ACEITAÇÂO, AMOR, JUSTIÇA, EMPATIA, ...

Esquecemos que tudo é conquistado com a pratica continua (mesmo que infrutífera a princípio) do que gostaríamos de receber, sermos aquele que reconhece, que respeita, que aceita o outro em sua forma de ser, aquele que ama acima de diferenças e defeitos, aquele que é justo apesar de opiniões e necessidades pessoais, aquele que se coloca na pele do outro, suas dores, dificuldades, necessidades...

Nossos direitos são fruto do exercício de nossos deveres e tem como limite o direito do outro. Ter direitos não isenta de nossos deveres.

Lembre-se, quem impõe o amor, alimenta o ódio. Quem impõe respeito, alimenta desprezo. Quem impõe aceitação, alimenta rejeição.

 

“O que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles. ” Lc 6,31.

 

Assim ensina Jesus em Mateus 22,36-40:

“Mestre, qual é o maior mandamento da Lei? ”.

Respondeu Jesus: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu o coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito (Dt 6,5). Esse é o maior e o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás teu próximo como a ti mesmo (Lv 19,18). Nesses dois mandamentos se resumem toda a Lei e os Profetas”.


Diác. Adriano Gomes

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A Correção Fraterna

 

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/a-correcao-fraterna-2/

 

A correção fraterna é uma advertência que o cristão faz ao seu próximo para o ajudar a avançar no caminho da santidade. É um instrumento de progresso espiritual que contribui para conhecermos os nossos defeitos pessoais e, com a ajuda de Deus, encararmos esses defeitos e melhorar na nossa vida cristã.

 

1. A correção fraterna, tradição de raiz evangélica

 

A correção fraterna tem uma profunda raiz evangélica. Jesus aconselha a sua prática no contexto de um discurso sobre o serviço aos mais pequenos e o perdão sem limites: “Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele somente; se te ouvir, terás ganho teu irmão”[1].

 

O próprio Jesus corrige os discípulos em diversas ocasiões, como nos mostram os Evangelhos: censura-os pelo germe de inveja que manifestam ao verem alguém que expulsava demônios em nome de Jesus[2]; repreende Pedro com firmeza porque não pensa como Deus, mas como os homens[3]; orienta a ambição desordenada de Tiago e João, corrigindo com carinho o modo errado como entendiam o reino que Jesus anuncia, ao mesmo tempo que reconhece as corajosas disposições dos dois irmãos para “beber o seu cálice”[4].

 

A partir do exemplo e dos ensinamentos de Jesus, a correção fraterna passou a ser uma espécie de tradição da família cristã, vivida desde o início da Igreja, uma obrigação ao mesmo tempo de amor e de justiça. Entre os conselhos de São Paulo aos cristãos de Corinto conta-se o de “se encorajarem mutuamente” (exhortamini invicem)[5]. Inúmeras passagens do Novo Testamento testemunham o desvelo dos pastores da Igreja ao corrigirem os abusos que estavam se infiltrando em algumas das primitivas comunidades cristãs[6]. No século IV, Santo Ambrósio, testemunha da prática da correção fraterna, escreve: “Se descobrires num amigo algum defeito, corrige-o a sós (…). É um fato que as correções fazem bem e são de maior proveito que uma amizade muda. Se o amigo se sentir ofendido, corrige-o mesmo assim; insiste sem medo, mesmo que o sabor amargo da correção o desgoste. Está escrito no livro dos Provérbios que as feridas provocadas por um amigo são mais toleráveis que os beijos dos aduladores (Pr 27,6)[7]. Também Santo Agostinho previne sobre a falta grave que suporia omitir esta ajuda ao nosso próximo: “Pior és tu calando do que ele pecando”[8].

 

2. A correção fraterna, uma necessidade do cristão

 

O fundamento natural da correção fraterna é a necessidade que qualquer pessoa tem de que os outros a ajudem a atingir o seu fim, pois ninguém se vê bem a si mesmo nem reconhece facilmente as suas faltas. Daí que também autores clássicos tenham recomendado esta prática como meio para ajudar os amigos. Corrigir o outro é expressão de amizade e de franqueza, e traço que distingue o adulador do amigo verdadeiro[9]. Deixar-se corrigir, por sua vez, é sinal de maturidade e condição de progresso espiritual: “Quem é bom se compraz em ser advertido, já os piores toleram com muita resistência quem os corrige” (Admoneri bónus gaudet; pessimus quisque rectorem asperrime patitur)[10].

 

O cristão precisa de que os seus irmãos na fé lhe façam o favor da correção fraterna. Com outras ajudas imprescindíveis – oração, mortificação, bom exemplo – essa prática – já constante da sabedoria do povo judeu – constitui um meio fundamental para alcançar a santidade, contribuindo assim para a extensão do Reino de Deus no mundo: “O que observa a disciplina está no caminho da vida; anda errado o que esquece a repressão”[11].

 

3. Corrigir por amor

 

A correção fraterna cristã nasce da caridade, virtude teologal que nos leva a amar a Deus sobre todas as coisas e ao nosso próximo como a nós mesmos, por amor a Deus. Sendo a caridade o “vínculo da perfeição[12] e a base de todas as virtudes, o exercício da correção fraterna é fonte de santidade pessoal para quem a faz e para quem a recebe. Para a pessoa que faz a correção, é uma oportunidade de viver o mandamento do Senhor: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amo”[13]. Para quem a recebe, traz as luzes necessárias para renovar a sua adesão a Cristo naquele aspecto concreto que foi objeto de correção. “A prática da correção fraterna – que tem raiz evangélica – é uma prova de carinho sobrenatural e de confiança. Agradece-a quando a receberes, e não deixes de a praticá-la com aqueles com quem convives”[14]. A correção fraterna não tem origem na irritação por uma ofensa que se recebe, nem na soberba ou vaidade feridas por faltas alheias. Só o amor pode ser o genuíno motivo para corrigir o próximo. Como ensina Santo Agostinho, “devemos, pois, corrigir com amor; não com desejo de causar dano, mas com a carinhosa intenção de conseguir a emenda. Se assim procedermos, cumpriremos muito bem o preceito: Se o teu irmão pecar contra ti, repreende-o entre ti e ele só. Porque o corriges? Porque ficaste aborrecido com a ofensa que te fez? Deus não o permita. Se o fazes por amor-próprio, nada fazes. Se o que te leva a fazê-lo é o amor, ages de modo sublime”[15].

 

4. A correção fraterna, dever de justiça

 

O dever que têm os cristãos de corrigir fraternalmente o seu próximo é uma exigência grave da virtude da caridade[16]. Encontramos no Antigo Testamento exemplos em que Javé lembra aos profetas essa obrigação, como no caso da advertência feita a Ezequiel: “Filho do homem, eu te constituí sentinela na casa de Israel. Logo que escutares um oráculo meu, tu lhe transmitirás esse oráculo de minha parte. Se eu disser ao pecador que ele deve morrer, e tu não o avisares para pô-lo de guarda contra seu proceder nefasto, ele perecerá por causa de seu pecado, mas a ti pedirei conta do seu sangue"Todavia, se depois de receber tua advertência para mudar de proceder, nada fizer, ele perecerá devido ao seu pecado, enquanto tu salvarás a tua vida”[17].

 

A mesma ideia aparece no Novo Testamento. O Apóstolo São Tiago põe-na em destaque: “Meus irmãos, se alguém fizer voltar ao bom caminho algum de vós que se afastou para longe da verdade, saiba: aquele que fizer um pecador retroceder do seu erro, salvará sua alma da morte e fará desaparecer uma multidão de pecados”[18]. E São Paulo considera a correção fraterna o meio mais adequado para atrair quem se afastou do bom caminho: “Se alguém não obedecer ao que ordenamos por esta carta […] não deveis considerá-lo como inimigo, mas repreendê-lo como irmão”[19]. Quando vemos as faltas dos nossos irmãos não podemos permanecer numa atitude passiva ou indiferente. Muito menos, queixarmo-nos ou fazermos acusações mal-humoradas: “É de maior proveito a correção amiga que a acusação irritada; a primeira leva à compunção, a última à indignação”[20].

 

Se todos os cristãos precisam dessa ajuda, temos o especial dever de praticar a correção fraterna com aqueles que ocupam determinadas posições de autoridade, de direção espiritual, de formação, etc., na Igreja e nas suas instituições, nas famílias e nas comunidades cristãs. Quem dirige precisa dessa ajuda com maior urgência pela maior responsabilidade da função que desempenha, pois, “Ninguém acende uma lâmpada e a cobre com um vaso ou a põe debaixo da cama; mas a põe sobre um castiçal, para iluminar os que entram”[21]. De igual modo, quem desempenha tarefas de governo ou formação tem uma especial responsabilidade em a praticar. Considerando estes casos São Josemaria ensina: “Esconde-se um grande comodismo - e, por vezes, uma grande falta de responsabilidade - naqueles que, constituídos em autoridade, fogem da dor de corrigir, com a desculpa de evitar o sofrimento aos outros.Talvez poupem desgostos nesta vida..., mas põem em risco a felicidade eterna - a sua e a dos outros - pelas suas omissões, que são verdadeiros pecados”[22].

 

5. Disposições necessárias para fazer e para receber a correção fraterna

 

A “comunhão dos santos” entre os que, unidos a Cristo morto e ressuscitado, ainda vivem peregrinos neste mundo, encontra na correção fraterna uma das suas manifestações mais genuínas. Todos nós, cristãos, formamos em Cristo uma só família, a Igreja, para louvor e glória da Trindade Santíssima[23].

 

Por isso, o exercício habitual da correção fraterna é mais patente no cristão que toma consciência da sua responsabilidade pela santidade dos outros, ou seja, do seu dever de colaborar para que cada batizado persevere no lugar onde Deus o chamou a santificar-se. Esta consciência torna-se cada vez mais viva, fomentando de modo habitual as disposições de solicitude para com o próximo, quer dizer, por meio de um “sadio preconceito psicológico de pensar habitualmente nos outros”[24].

 

Outra atitude igualmente necessária é estarmos dispostos a vencer as dificuldades que possam surgir:

 

1) Ter uma visão excessivamente humana e pouco sobrenatural, que faça pensar que não vale a pena fazer a correção;

2) Ter medo de magoar o corrigido;

3) Julgar que a indignidade pessoal é impedimento para corrigir o outro, que se considera mais capaz ou mais idôneo;

4) Achar que não é oportuno corrigir, quando se tem – inclusive em maior grau – o mesmo defeito que devemos corrigir no outro;

5) Pensar que não é possível que a pessoa corrigida melhore, ou que a mesma correção já foi anteriormente feita sem resultados visíveis.

 

Em última análise, tais conflitos procedem habitualmente de respeitos humanos, do medo de ficar mal ou de um excessivo comodismo. Tudo isto desaparece facilmente se está viva a consciência habitual da comunhão dos santos e, portanto, da lealdade devida à Igreja e aos seus pastores, às suas instituições e a todos os irmãos na fé.

 

Para receber com fruto a correção fraterna, o corrigido deve atualizar com frequência os seus desejos de santidade, para assim ver na advertência recebida uma graça divina que lhe servirá para melhorar na fidelidade a Deus e no serviço aos outros. O exercício da virtude da humildade dar-lhe-á as disposições adequadas para acolher as correções com agradecimento, e permitir-lhe-á ouvir a voz de Deus sem endurecer o coração[25].

 

6. Como fazer e receber uma correção fraterna

 

Dos conselhos concretos de Jesus[26] e de outros ensinamentos contidos nos evangelhos sobre a correção fraterna depreendem-se alguns traços característicos do modo como se deve praticar a correção fraterna: visão sobrenatural, humildade, delicadeza e carinho.

 

Sendo uma advertência com finalidade sobrenatural – a santidade do corrigido –, convém que quem corrige pondere na presença de Deus a oportunidade da correção e o modo mais prudente de a fazer (o momento mais conveniente, as palavras mais adequadas, etc.) para evitar humilhar o corrigido. Pedir luzes ao Espírito Santo e rezar pela pessoa a corrigir favorece o clima sobrenatural necessário para que a correção seja eficaz.

 

É igualmente oportuno que a pessoa que corrige considere com humildade, na presença de Deus, a sua indignidade pessoal, e se examine sobre a falta que é matéria de correção. Santo Agostinho aconselha que se faça um exame de consciência, pois é frequente darmo-nos conta nos outros precisamente daquilo que mais nos falta a nós: “Quando a necessidade nos obrigar a repreender ou corrigir a alguém, perguntemo-nos se aquele vício apontado não é de tal natureza que nunca o tivemos, ou se é dos que já nos libertamos. Também se nunca o cometemos, pensemos que somos humanos e podemos vir a cometê-lo. Caso o tenhamos tido no passado, e agora nos sentimos livres dele, suscitemos a consciência de nossa fragilidade, para que a indulgência, e não o ódio, nos dite a censura ou a correção”[27].

 

A delicadeza e o carinho são traços distintivos da caridade cristã e também, portanto, da prática da correção fraterna. Para garantir que essa advertência é expressão de autêntica caridade, é importante perguntar a si mesmo, antes de a fazermos: como agiria Jesus nesta circunstância, para com esta pessoa? Assim perceberemos melhor que Jesus não só corrigiria com prontidão e firmeza, mas também com amabilidade, compreensão e carinho. A este propósito, ensina São Josemaria: “A correção fraterna, sempre que devas fazê-la, há de estar cheia de delicadeza - de caridade! - na forma e no fundo, pois naquele momento és instrumento de Deus”[28]. Uma demonstração concreta de delicadeza será fazer essa advertência a sós com o interessado, prescindindo de qualquer comentário ou brincadeira que possa perturbar o clima sobrenatural em que se realiza a correção.

 

Ao praticar a correção fraterna, dever-se-á evitar uma possível tendência para o anonimato. Esta inclinação desaparece quando, com a graça de Deus, quem corrige faz um ato concreto de lealdade e pensa na comunhão dos santos. A lealdade levá-lo-á a corrigir frente a frente, sem fingir nem diminuir a exigência, com a franqueza de quem procura o bem do outro e a santidade da Igreja. A necessária firmeza na correção não é incompatível com a amabilidade e a delicadeza: quem corrige deve assemelhar-se a uma “maça poderosa de aço, almofadada”[29].

 

A virtude da prudência desempenha aqui um papel importante como guia, regra e medida do modo de fazer – e também de receber – a correção fraterna. “A prudência leva a razão a discernir, em cada circunstância, o nosso verdadeiro bem e a escolher os meios adequados para o realizar”[30]. Por isso, uma norma de prudência comprovada pela experiência é pedir conselho a uma pessoa sensata (o diretor espiritual, o sacerdote, o superior, etc.) sobre a oportunidade de fazer a correção. Esta consulta, longe de ser uma acusação ou denúncia, constitui um sábio exercício da virtude da caridade, que procura evitar que alguém seja corrigido por várias pessoas sobre o mesmo assunto, e ajuda quem corrige a amadurecer os seus juízos e a formar a sua própria consciência; em resumo, a ser “alma de critério”[31]. A prudência levará também a não fazer com excessiva frequência correções sobre o mesmo assunto, pois deve-se contar com a graça de Deus e com o tempo para que os outros melhorem.

 

As matérias que são objeto de correção fraterna abarcam todos os aspetos da vida do cristão, pois todos eles constituem o seu campo de santificação pessoal e do apostolado da Igreja. De modo geral, podemos pôr em destaque os seguintes pontos:

 

1) Hábitos contrários aos mandamentos da lei de Deus ou da Igreja;

2) Atitudes ou comportamentos que chocam com o testemunho que um cristão está chamado a dar na vida familiar, social, profissional, etc.;

3) Faltas isoladas, caso constituam grave dano para a vida cristã do interessado ou para o bem da Igreja[32].

 

Ao recebê-la, é importante sabermos manter uma atitude adequada, que se resume nestes aspectos: visão sobrenatural, humildade e agradecimento. Ao receber a correção, é razoável que a pessoa corrigida a aceite com agradecimento, sem discutir nem dar explicações ou desculpas, pois vê em quem o corrige um irmão que se preocupa com a sua santidade. Nos casos em que do fundo da alma brote irritação ou desagrado, convirá meditar as palavras de são Cirilo: “A repreensão, que faz melhorar os humildes, costuma parecer intolerável aos soberbos”[33]. Nestes casos, a prudência aconselha a meditar na presença de Deus sobre a correção recebida para penetrar em todo o sentido; e, no caso de não a entendermos, para pedirmos conselho a uma pessoa prudente (sacerdote, diretor espiritual, etc.) que ajude a compreender o seu alcance.

 

7. Os frutos da correção fraterna

 

São inúmeros os benefícios da prática da correção fraterna, tanto para quem a recebe como para quem a faz. Como ato concreto de caridade cristã, tem por frutos a alegria, a paz e a misericórdia. Além disso, supõe o exercício de muitas virtudes: caridade, humildade, prudência; melhora a formação humana, tornando as pessoas mais bem-educadas; facilita o relacionamento entre as pessoas, tornando-o mais sobrenatural e, ao mesmo tempo, mais agradável do ponto de vista humano; orienta o possível espírito crítico negativo, que poderia levar a julgar com sentido pouco cristão o comportamento dos outros; impede murmurações ou piadas de mau gosto sobre comportamentos ou atitudes do nosso próximo; fortalece a unidade da Igreja e das suas instituições a todos os níveis, contribuindo para dar maior coesão e eficácia à missão evangelizadora; garante a fidelidade ao espírito de Cristo; permite aos cristãos experimentar a segurança que vem da certeza de saberem que não lhes faltará a ajuda dos seus irmãos na fé: “O irmão ajudado pelo seu irmão é forte como um cidade amuralhada”[34].

 

J. Alonso

julho 2010

 

Bibliografia básica

 

§ Catecismo da Igreja Católica, 1822-1829

Santo Agostinho, Sermo 82

São Tomás de Aquino, Suma Teológica II-IIae, q. 33

São Josemaria:

-Sulco: 373, 707, 821, 823, 907

-Forja: 146, 147, 455, 566, 567, 577, 641

-Amigos de Deus, 20, 69, 157, 158, 160-161, 234

M. Nepper, Correction Fraternelle, em Dictionnaire de spiritualité, ascétique et mystique II, Beauchesne, Paris 1953, 2404-2414

C. Gennaro, Corrección fraterna, en E. Ancilli, Diccionario de espiritualidad, I, Herder, Barcelona 1987 (2ª ed. ), 499-500

J. M. Perrin, El misterio de la caridad, Rialp, Madrid 1962

[1]Mt 18, 15.

[2]Cf. Mc 9, 38-40.

[3]Cf. Mt 16, 23.

[4]Cf. Mt 20, 20-23.

[5]2 Cor 13, 11.

[6]Cf., p. ex., St 2.

[7]Santo Ambrósio, De officiis ministrorum III, 125-135.

[8] Santo Agostinho, Sermo 82, 7.

[9]Cf. Plutarco, Moralia, I.

[10]Séneca, De ira, 3, 36, 4.

[11]Pr 10, 17.

[12]Cf. Col 3, 14.

[13]Jo 15, 12.

[14]São Josemaria, Forja, n. 566.

[15]Santo Agostinho, Sermo 82, 4.

[16]Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1829.

[17]Ez 33, 7-9.

[18]Tg 5, 19- 20.

[19]2 Ts 3, 13-15; Cf. Gl 6, 1.

[20]Santo Ambrósio, Catena Aurea, VI.

[21]Lc 8, 16; Cf. Mc 4, 21.

[22]São Josemaria, Forja, n. 577.

[23]Cf. Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 195.

[24]São Josemaria, Forja, n. 861.

[25]Cf. Salmo 94.

[26]Mt 18, 15-17: “Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele somente; se te ouvir, terás ganho teu irmão. 16.Se não te escutar, toma contigo uma ou duas pessoas, a fim de que toda a questão se resolva pela decisão de duas ou três testemunhas. 17.Se recusa ouvi-los, dize-o à Igreja. E se recusar ouvir também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano”.

[27]Santo Agostinho, Sobre o Sermão da Montanha, 2.

[28]São Josemaria, Forja, n. 147.

[29]Cf. Id., Caminho, n. 397.

[30]Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 380.

[31]Cf. São Josemaria, Caminho, Introdução.

[32]Como é lógico, no seio das diversas instituições da Igreja constituem também matéria de correção fraterna comportamentos ou faltas que se oponham ao espírito ou aos costumes próprios de cada uma dessas instituições suscitadas por Deus.

[33]São Cirilo, Catena Aurea, vol. VI

[34]Pr 18, 19.